OS TIKMũ’ũN
Os Tikmũ’ũn, conhecidos como Maxakali, são povos falantes da língua Maxakali, pertencente à família Maxakali, classificada no tronco linguístico Macro-Jê, a única hoje falada entre as demais desta família, como a Pataxó, Makoni, Kopoxó, Koropó, Malali, Kumanaxó, Kutaxó, Paname, Makuni, Kopoxó, Pirixu, etc. Somam cerca de 2800 pessoas, com alta porcentagem de crianças, distribuídas em quatro terras indígenas em Minas Gerais:
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TI Maxakali - Água Boa (Santa Helena de Minas) e Pradinho (Bertópolis), 5.305 ha (1979 pessoas);
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Reserva Indígena Aldeia Verde (Ladainha), 544, 72 ha (199 pessoas);
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Reserva Indígena. Cachoeirinha (Teófilo Otoni), 606, 19 ha (15 pessoas);
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Aldeia-Escola Floresta (T.O.), 122 ha (326 pessoas).
Segundo as informações dos Tikmũ’ũn, seus antepassados vieram de várias regiões, trazendo cada um os repertórios de cantos e rituais que hoje se realizam nas aldeias. Embora sejam sistematicamente e indevidamente tratados como um único povo, estes Tikmũ’ũn mantêm ativa a memória da diversidade dos seus grupos originários que percorreram durante os séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e XX os espaços compreendidos entre o litoral sul da Bahia e o leste de Minas Gerais, ao longo dos vales dos rios Pardo, Jequitinhonha, Mucuri, Buranhém, Jucuruçu (ou rio do Prado), Itanhém (ou rio Alcobaça), Dôce e São Mateus e outros rios menores dessa região.
Se o projeto de destruição de seus territórios avançou, a assimilação dos Tikmũ’ũn não. Ainda hoje empreendem viagens pelas regiões ancestrais onde inventariam o que seus parentes ensinaram: conjuntos de cantos, danças, léxicos, histórias e um grande corpus de conhecimentos sobre fauna e flora, que denominam YÃMĨYXOP. Atualizam com vitalidade nas suas aldeias cerca de 12 corpora de cantos-rituais, um Patrimônio Imaterial de inestimável riqueza cultural e histórico-linguística.
OS TIKMũ’ũN E
OS YÃMĩYXOP
Os Tikmũ’ũn ensinam histórias de encontros dos seus ancestrais com diferentes povos, chamados por eles como yãmĩyxop: povos-morcegos, povos-papagaios, povos koatkuphi, povos-macacos, povos-kõmãyxop, povos-lagartas, povos-antas, povos-vagalumes, povos-vespas, povos-formigas, povos-girinos, povos-pacas, povos-caboclos-d’água, povos-orelhas-grandes -os “botocudos”-, povo-ẽhẽ - outros “botocudos”-, e com diferentes seres (mĩmputax, filho-do-trovão, filho-abelha, lontra, panãnot). Ensinam também histórias de como seus parentes se transformaram em outros povos: povos-gaviões, povos-yãmĩy, povos-yãmĩyhex, povos-anta, povos-queixada.
Desta forma, não possuem uma única história de forma unívoca, ou apenas a história do seu contato com os brancos. Os Tikmũ’ũn possuem uma historiografia rica, complexa, de encontros marcados por alianças, guerras, filiações, adoções, trocas de cantos, alimentos, conhecimentos de plantas, etc. Por meio de sua relação cotidiana com os yãmĩyxop atualizam um patrimônio imaterial de inestimável riqueza cultural. Cada um deles possui formas de enunciação vocal, regimes e efetivos (responsórios, solistas alternados, coros femininos alternados com coros masculinos, coros antifônicos), cantos, textos, instrumentos, regimes alimentares bastante diferenciados. Mas o que mais vem chamando a atenção de alguns estudiosos é que esses conjuntos de cantos correspondem a um real acervo histórico linguístico, que nos possibilita vislumbrar dados lexicais e gramaticais das várias línguas de povos indígenas interrelacionados que habitaram essa região que já foi coberta pela Mata Atlântica e que hoje estão desaparecidos.
Os Yãmĩyxop servem como sistemas classificatórios distintivos entre todos estes repertórios dos quais os povos Tikmũ’ũn têm sido os guardiões.
Cada um dos 12 yãmĩyxop hoje enumerados pelos Tikmũ’ũn encerra cerca de 30 horas de cantos, possuindo, por sua vez, cada um, um léxico diferenciado, com sistemas de classificação diferenciados, e muito provavelmente herdados e resguardados pelos Tikmũ’ũn dos vários povos falantes de línguas da família Maxakalí. Estes repertórios são o inventário de um conhecimento pormenorizado da Mata Atlântica, como este canto do papa-mel:
(Desenho de Donizete Maxakali)
quero o mel da arapuá hui hui
quero o mel da moça-branca hui hui
quero o mel do mandaguari-amarelo hui hui
quero o mel do guaraipo hui hui
quero o mel da dona-branca hui hui
quero o mel da uruçu hui hui
ai, eu quero, hui hui
quero o mel do mandaguari-amarelo hui hui
quero o mel do mandaguari-amarelo hui hui
quero o mel da saranhão hui hui
quero o mel da mombucão hui hui
quero o mel da arapuá hui hui
quero o mel da abelha-cachorro hui hui
quero o mel da arapuá hui hui
quero o mel da uruçu hui hui
quero o mel da abelha corta-folha hui hui
quero o mel da mandaçaia hui hui
quero o mel a guaraipo hui hui
quero o mel da abelha pequena hui hui
quero o mel da moça-branca hui hui
quero o mel da uruçu hui hui
quero o mel da abelha-mirim hui hui
quero o mel da dona-branca hui hui
quero o mel da jataí hui hui
quero o mel da iraí hui hui
quero o mel da mombuca hui hui
quero o mel da mombuca hui hui
quero o mel da moça-branca hui hui
quero o mel da puxxokata hui hui
quero o mel da koxkak hui hui
quero o mel da abelha-da-orquídea hui hui
quero o mel da abelha hui hui
quero o mel da pukyãykuxnõg hui hui
quero comer qualquer fruta hui hui
quero comer o fruto da gameleira hui hui
quero comer mamão hui hui
quero comer jenipapo hui hui
quero comer cajá hui hui
quero comer o fruto da embaúba-branca hui hui
quero comer abacaxi hui hui
quero comer maracujá hui hui
quero comer o fruto da embaúba do brejo hui hui
quero comer a fruta da semente grande hui hui
quero comer jabuticaba hui hui
quero comer manga hui hui
quero comer a fruta igual jabuticaba hui hui
quero comer banana hui hui
quero comer cana hui hui
quero comer jaca hui hui
hãã
AS TERRAS TIKMũ’ũN
Embora não disponham mais de matas, os Tikmũ’ũn seguem cantando os cantos que enumeram seu conhecimento sobre sua biodiversidade, produzindo e reproduzindo suas práticas culturais coletivas e preservando sua língua. Neles enfrentam e resistem a inúmeros processos de devastação por parte de frentes extrativistas e fazendeiros, expondo-os a mais uma faceta de violência pela qual os indígenas são historicamente submetidos no Brasil. Por esta surpreendente força e resistência cultural, os Tikmũ’ũn são respeitados pelos povos indígenas de todo o país e procurados por pesquisadores e artistas do Brasil e do mundo. Portanto, recuperar esses territórios é urgente para garantir direitos fundamentais aos Tikmũ’ũn e também proteger um patrimônio cultural para toda a humanidade.Estudos de historiadores nos permitem cartografar a presença e circulação dos povos Tikmũ’ũn por uma vasta região entre Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo, compreendendo as bacias dos rios Pardo, Jequitinhonha, Mucuri, Prado, São Mateus e Rio Doce. As várias pressões coloniais e sucessivos massacres levaram estes povos a se aglutinar na divisa de Minas Gerais e Bahia, onde se encontra a Terra Indígena Maxakali.
Fonte do mapa: Paulo Dimas de Menezes. Mapa compreendendo (em verde) toda a região historicamente percorrida e ocupada pelos povos Tikmũ’ũn
TERRA INDÍGENA MAXAKALI
Segundo a historiadora Maria Hilda Paraíso (em: O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste, São Paulo, USP, 1998) as notícias de um grupo “Amixokori” datam do século XVI, assim referidos pelos Tupi do leste. Estudos e relatos de historiadores nos permitem cartografar a presença e circulação dos povos Tikmũ’ũn por uma vasta região entre os estados de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo, compreendendo as bacias dos rios Pardo, Jequitinhonha, Mucuri, Prado, São Mateus e Rio Doce. A pesquisadora aponta em mapa os registros históricos de aldeamentos maxakali com suas datas.
As várias pressões coloniais e sucessivos massacres levaram estes povos a se aglutinar inicialmente, na divisa dos estados de Minas Gerais e Bahia, onde se encontra a Terra Indígena Maxakali Pradinho/Água Boa (Bertópolis e Santa Helena de Minas – MG). Desta forma, além de limitados a um território reduzido, transformado em pastagens pelos invasores, os Tikmũ’ũn se viram privados de fontes de água, de matas e dos recursos necessários à perpetuação de sua vida. Após a constituição de 1988 o Território Tikmũ’ũn não passou por estudos de revisão para recompor seus territórios tradicionais.
Três frentes de expansão demarcam a destruição do ecossistema onde viviam esses povos. 1. As entradas e bandeiras que buscavam fontes de extração mineral e os envolveu como mão-de-obra, mantendo-os em quartéis e aldeamentos como testemunham os relatos das viagens dos naturalistas que estiveram na região. 2. Uma frente, decisiva para a devastação do Vale do Mucuri, que buscava fundar povoamentos de pequenas propriedades e proporcionar o trânsito da região do Mucuri até o litoral com a instalação dos agricultores e pecuaristas. Deste momento constam registros de aldeamentos dos capuchinhos e de Teófilo Otoni, responsável em 1847 pela Companhia de Navegação e Comércio que deveria ligar o centro-oeste de Minas Gerais ao litoral. 3. A terceira frente de expansão, de extração mineral, completou a penetração na região. No início do século XIX, a decadência das minas de ouro e diamante impulsionaram os colonizadores para os Vales do Rio Doce e Mucuri, até então mantidos como barreira geográfica que impedia o tráfico das pedras preciosas das serras para o mar. Para desfazerem-se desta barreira, era preciso desfazerem-se, igualmente, da “barreira humana”: os milhares de indígenas que ali habitavam desde tempos imemoriais. As autoridades consideravam que “enquanto houvesse mata haveria correrias de índios”. A melhor maneira de subjugar aqueles povos seria, portanto, despossuí-los de suas terras. O plano era anunciado pelo então governador de Minas Gerais, Ataíde e Melo:
“(...) estes antropófagos se achariam na precisão de largarem suas habitações; e uma vez perseguidos, se embestariam nos matos à proporção que estes fossem desmanchando e com o andar do tempo se domariam (se é possível domar monstros deste toque).” (apud Paraíso, 1998: 180).
Limitados a um território reduzido transformado em pastagens, os Tikmũ’ũn se viram privados de fontes de água, de matas e dos recursos necessários à perpetuação de suas vidas. Após a constituição de 1988 o seu território tradicional não passou por estudos de revisão demarcatória.
RESUMO CRONOLÓGICO DO HISTÓRICO SOBRE OS POVOS TIKMũ’ũN E SUA SITUAÇÃO TERRITORIAL
01.
No início do século XX as cabeceiras do rio Itanhém, último refúgio dos povos Tikmũ’ũn após três séculos de contato intermitente eram totalmente cobertas por floresta de Mata Atlântica
02.
Nas primeiras décadas do século XX, sobretudo após a abertura da estrada de ferro Bahia-Minas, uma nova leva de “nacionais” se dirige para aquela região e se instalam nos locais das atuais cidades de Machacalis (MG), Bertópolis (MG), Santa Helena de Minas (MG) e Batinga (BA).
03.
Apavorados com as aparições dos indígenas em suas fazendas e vilarejos, os moradores locais contratam os serviços de um conhecido ”amansador de índios” da região, chamado Joaquim Fagundes.
04.
Em 1920, o governo de Minas Gerais anuncia a “doação” de 2000 ha na localidade para construção de um Posto Indígena, na área conhecida como Água Boa.
05.
Joaquim Fagundes então inicia a venda das terras onde viviam os Tikmũ’ũn alegando dívidas do antigo Serviço de Proteção ao Índio com ele, devido aos seus esforços de “pacificação”.
06.
Fagundes convence a maioria das famílias Tikmũ’ũn a acompanhá-lo para uma outra terra na região de Água Preta (atual Itanhém, BA). Lá, dezenas morrem dizimados por surtos de sarampo, malária e coqueluche.
07.
Os sobreviventes retornam para as margens do rio Umburanas, mas encontram suas terras sitiadas por fazendeiros. Com o início dos conflitos, Fagundes desapareceu da região.
08.
Em 1941, o SPI finalmente demarca uma porção de terra em Água Boa (Santa Helena de Minas, MG) e cria o Posto Indígena Engenheiro Mariano de Oliveira. Porém deixa de fora da demarcação a terra vizinha onde viviam os indígenas da atual aldeia do Pradinho (Bertópolis, MG).
09.
Somente em 1956, após a comoção gerada pelo assassinato cruel de uma liderança do Pradinho por fazendeiros locais, o SPI demarca uma nova porção de terra, mantendo, entretanto, o corredor de fazendas que dividia as aldeias do Pradinho de Água Boa.
10.
Após décadas de reivindicações e luta dos indígenas, com apoio do CIMI e CEDEFES, finalmente, em 1993 é declarada uma nova demarcação pela FUNAI, unificando os dois territórios. A desintrusão dos fazendeiros, entretanto, só iria ocorrer em 1999.
11.
Mais uma vez, a nova demarcação ignora o território de ocupação tradicional reconhecido pelos próprios indígenas nos arredores da terra demarcada. Além disso, quase todo o território originalmente de Mata Atlântica já havia sido devastado e substituído por capim colonião (Panicum maximum) naquela altura, devido à décadas de ações dos fazendeiros.
12.
Em 2004, eclodem graves conflitos entre famílias de Água Boa e Pradinho, que deixam a terra demarcada para retomar uma das porções de terra vizinhas que ficaram de fora da demarcação.
13.
Após a escalada da violência, estimulada pelos fazendeiros locais, a FUNAI, com apoio da Polícia Federal e depois de uma ordem judicial, desloca os indígenas para Governador Valadares e, em seguida, Campanário (MG), onde vivem dois anos até que o Governo Federal adquire uma fazenda em Ladainha, para onde se mudaram em 2007 e criaram a Aldeia Verde.
14.
A fazenda adquirida, contudo, não possuía um curso de água corrente no seu território, dando origem a um novo problema que se aprofundou ao longo das primeiras décadas do século XXI.
15.
Entre 2007 e 2020, a população local passou de cerca de 100 pessoas, para 400, e a Aldeia Verde se tornou a maior em concentração populacional de todo o povo Tikmũ’ũn.
16.
A ausência de rio, o aumento dos conflitos internos devido à alta concentração populacional, um esquema de exploração de benefícios sociais e a entrada de missionários evangélicos na comunidade gerou um clima insustentável que culminou na saída de mais de 100 famílias da Aldeia Verde em junho de 2020 para uma terra arrendada pela Prefeitura de Ladainha.
17.
Ainda em 2011, pouco mais de quatro anos após a aquisição da terra, a antropóloga e então servidora da Funai de Brasília Renata Otto Diniz esteve na Reserva Hãm Yixux (Aldeia Verde) e enviou à Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGID) da Funai a Informação Técnica/CGID/2011 na qual já alertava para os problemas associados ao crescimento populacional e encaminhava a demanda então já existente por ampliação do território de modo a incorporar no seu interior algum curso de água corrente.
18.
Três anos depois, na Informação Técnica Nº03/SEGAT/CR/MG-ES/2014, o antropólogo da Funai Jorge Teixeira reafirma a demanda do grupo e destaca o crescimento populacional e a intensificação das disputas internas às famílias aldeadas em Aldeia Verde.
19.
9 de junho de 2018. Carta da Aldeia Verde “pedindo com urgência que, através dos meios disponíveis, um território que atenda às nossas necessidades, seja adquirido. Que o governo reconheça as especificidades do nosso povo e faça valer os nossos direitos”.
20.
Em Março de 2020, é declarada a pandemia de COVID-19 pela OMS
O isolamento acirra os conflitos internos em Aldeia Verde.
21.
Para apoiar os indígenas e garantir seu isolamento na aldeia, o MPF cria Comitês de Apoio ao Combate à Covid-19 em todos os municípios sede das aldeias Tikmũ’ũn.
22.
A atuação dos comitês desvela uma prática já conhecida e denunciada há anos relacionada à exploração dos benefícios sociais dos indígenas por comerciantes, funcionários e algumas lideranças indígenas. Vários indígenas tomam conhecimento de cartões de benefícios que desconheciam e que estavam nas mãos destes agentes. Uma operação da Polícia Federal realizada em Julho de 2020 apreende diversos cartões, documentos e um homem acusado de comandar o esquema é preso.
23.
Desde 2019, aumenta também a ação de missionários e pastores neopentecostais em Aldeia Verde. Algumas famílias se convertem e passam a conduzir o trabalho de conversão de outros indígenas, especialmente jovens e crianças. Os recém-convertidos condenam a participação em rituais, a pintura corporal e desautorizam os pajés.
24.
No início de 2021: Nova gestão da Prefeitura de Ladainha não renova o contrato de arrendamento nem apoia os indígenas na busca por uma nova terra.
25.
Descobre-se que a aldeia está localizada em área de risco, pois à jusante de uma PCH. Segundo laudo dos Bombeiros, não houve reformas estruturais na usina e há recomendação para evacuação de toda a área.
26.
Buscas pela terra continuam> dificuldades > superfaturamento, exploração, deslocamento.
27.
Em 17 de Fevereiro de 2021 as 96 famílias da Aldeia Nova em Ladainha se transferem para outra área por eles alugada, também em Ladainha, no distrito de Concórdia do Mucuri, onde se encontram sem assistência à saúde, sem roças e sem soluções para a falta de terras.
TI MAXAKALI (PRADINHO E ÁGUA BOA)
Após séculos de fugas e deslocamentos forçados, os Tikmũ’ũn acabaram se refugiando nas cabeceiras do rio Umburanas, na divisa entre os atuais estados de Minas Gerais e Bahia. Ali, o cerco se fechou. Entre 1910 e 1915, os sobreviventes foram contatados pelo recém criado Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Porém, foi somente na metade do século, nos anos 1940, que uma primeira área de somente 2.000 hectares foi oficialmente reconhecida e demarcada para os indígenas em Água Boa, após a visita e publicação de um relatório pelo etnólogo alemão Curt Nimuendaju, em 1938, que já identificava a presença de famílias vivendo na região conhecida como Mĩkax Kaka (Debaixo da Pedra), atual território do Pradinho. À despeito disso, a área do Pradinho só seria reconhecida mais de uma década e meia depois da demarcação de Água Boa, em 1956, após a comoção gerada pelo assassinato de Antônio Cascorado Maxakali, morto e queimado por fazendeiros da região. Apesar da proximidade, as duas glebas de terra permaneceram divididas por um corredor de fazendas até o final da década de 1990. Entre os fazendeiros que dividiam o território estava o Capitão Manoel dos Santos Pinheiros, um dos principais responsáveis pelo esbulho das terras Tikmũ’ũn na segunda metade do século XX. Em resposta à absurda divisão territorial, uma grande campanha internacional foi articulada por lideranças indígenas junto ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Centro de Documentação Eloy Ferreira (CEDEFES) e a ONG internacional DKA-Austria. Finalmente, em XXXX foi homologada a demarcação da TI Maxakali, unindo os dois territórios.
Apesar da conquista histórica, os limites do território reconhecidos naquele momento ignoraram toda a extensão de terra nos arredores de Água Boa e Pradinho que também fazem parte do território de ocupação tradicional tikmũ’ũn. Na prática, a nova homologação os manteve confinados em uma das menores terras indígenas demarcadas de todo o país. Além disso, a floresta foi reduzida a um imenso deserto de capim, paisagem que hoje predomina na TI Maxakali. As violações de direitos e o esbulho de suas terras jamais foram reconhecidas ou reparadas pelo Estado brasileiro. Apesar dos reiterados apelos das lideranças pela revisão dos limites do território, nenhum processo formal de reconhecimento e delimitação de terra indígena avançou nos últimos anos. Nunca houve, em suma, um estudo que defina e destine a eles as terras em condições garantidas pela Constituição de 1988, quais sejam, “as terras habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (Artigo 231; §1).
Nesta terra arrasada onde foram “cercados”, como costumam dizer, praticamente não há mais mata, nem água, nem bichos. Quando o etnólogo alemão Curt Nimuendaju visitou os Tikmũ’ũn, em 1938, ele observou que “já dois terços desse paraíso dos índios lavradores e caçadores que estava coberto de mata ininterrupta estão transformados em vastas pastagens de capim colônia, na sua maior parte, sem uma única rez, pelos intrusos.” (Nimuendaju, 1958 [1939]: 56). Atualmente, o córrego Água Boa e o rio Umburanas, principais cursos d’água que cortam a TI Maxakali, estão cada vez mais secos e impróprios para o consumo, banho e pesca. Muitas aldeias passam meses inteiros sem acesso à água potável. Durante as secas, o fogo se alastra pelo capim com facilidade, cobrindo o território de fumaça e provocando diversas doenças respiratórias. De tempos em tempos, surtos de diarréia levam crianças à morte. Os benefícios sociais inaugurados pelos programas de transferência de renda do Governo Federal não chegam a muitas das famílias, pois seus cartões são frequentemente retidos por comerciantes locais. Quando deixam os limites das suas terras para caçar e pescar, são agredidos com ofensas ou tiros.
Nós somos de Água Boa. Meu avô, capitão Pacheco, morava com os filhos em Água Boa. Mas, os não-indígenas queriam matar meu tio e ele fugiu. Aí outro branco falou com ele: “à noite, eles vão te matar”. Disseram. Aí ele correu e foi embora morar em outro lugar. Meus tios foram embora para um lugar chamado Mikax Papnok (Pedra Branca) dentro de Água Boa. Essa terra era do meu pai Hermano e do meu tio.
Eles foram e ficaram com outros parentes nossos que já viviam lá. Meu pai voltou para ao posto em Água Boa. Antigamente este lugar era chamado de “Posto”. Meu pai ficou no Posto. O irmão do meu pai insistiu para ele ir viver em Mikax kaka (no Pradinho). Ele ia para Mikax kaka. Só que ele não foi logo não. Demorou um pouco em Água Boa. Eles voltaram para Água Boa. Os brancos continuaram perseguindo meu avô e ele ficou no Posto. Acabou morrendo lá.
Depois que enterraram meu avô, meu pai foi para Mikax kaka encontrar os parentes. E morou lá. Minha avó foi junto com ele. Eu vi minha avó, mas não vi meu avô. Nós moramos no Pradinho.
Quando eu cresci, meu pai me contava:
- Minha filha, nós viemos de lá, de Água Boa, nossa terra é no Posto. Não é aqui não. Você não nasceu aqui. Nasceu no Posto.
Minha irmã, a outra irmã, Vitalina, depois Adelina, eu e Milton nascemos todos em Água Boa. E aí fomos embora. E lá nasceu Edgar, Valdemar, Miguelzinho. Mas fomos: minha mãe, meu pai e meu avô nos levaram de Água Boa. Lá o governo antigo começou a construir casas para os Tikmũ’ũn.
Aí meu pai me colocou na corcunda e me levou. Eu não entendia nada. Foi no Mikax kaka que comecei a entender um pouquinho.
No posto de Água Boa também fizeram casa boa para os Tikmũ’ũn . E fizeram uma casa separada para meu pai. Fizeram para cá da Jaqueira, perto da divisa. Foi ali que meu avô morreu.
Aí os filhos foram embora para onde os irmãos chamaram. Capitãozinho, o irmão de meu pai. Meu pai morou lá com ele. Em Mikax kaka. E lá não tinha muita gente. Eram muito poucos. Não era como agora, que somos um povo de muita gente. Agora somos muita gente, muitos adultos.
Os brancos vinham de longe. Antônio Fabrício veio de longe. Severiano também veio de longe. E ficou morando. Ele veio só, sem filhos. Chegava, fazia amizade com os índios e dizia:
- Ah, vou morar aqui, vou morar aqui”. Iam enganando os índios. “Vou morar aqui, perto de vocês. Aí vou tirar leite e dar para vocês. E vou dar comida para vocês.
Aí os índios o deixavam morar lá, diziam:
- Ele vai dar comida pra gente
Iam e o branco matava porco, dava toucinho para os índios e eles pensavam:
- Eles são bons, dão comida pra gente!
Aí eles iam ganhando os filhos, e os filhos cresciam. Meninos, meninas, e aí se casavam e construíam uma casa, e o outro construía outra...e juntavam muitas. Aí os índios viam aquele tanto de casa. Quando eu era pequena só tinha uma pessoa, e tinha muita mata. Essa terra que agora tomamos do Severiano, antigamente nela tinha muita mata. Agora não tem mais mata. Tinha mata até em Bertópolis. Eu vi toda essa mata. Os filhos de Severiano e de Antônio Fabrício cresceram e roçaram a mata. Eles roçavam muito, partes grandes para plantar capim. Os filhos de Severiano que acabaram com a mata. E Antônio Fabrício vinha roçando de lá para cá. Lá onde morava Reginaldo e os seus tios.
Os fazendeiros dividiam entre eles. Os irmãos e as irmãs vinham e ficam morando ali com eles. E a terra não era deles. Era nossa. Mas os brancos chegaram aos poucos e depois vieram mais. Aí moram ali e ficam achando ruim, achando que os índios estavam em cima da terra deles.
E matavam. Se um ficava bêbado ele amarrava no cabo do cavalo e ia matando. Em cima da nossa terra. Eu vi. Eu vi o índio passar lá, nem fazia coisa errada e eles matavam. Diziam: “ah, ele fez isso e eu matei”. Mas era mentira.
Era por causa da terra. Iam matando, matando, para acabar, e eles ficarem em cima da nossa terra.
Delcida Maxakali
TI ALDEIA VERDE
“Poucas coisas são piores e nos deixam mais tristes, hoje, do que a falta de um rio no nosso território. Sem um rio, não temos onde pescar, onde banhar, onde lavar nossas roupas ou deixar a mandioca cozida descansar. Sem o rio, as nossas crianças não têm onde brincar e crescerem fortes e por isso adoecem tanto hoje em dia. Sem o rio os nossos rituais também estão prejudicados: os nossos espíritos não têm onde se banhar quando vêm dançar conosco, nem nós, homens e mulheres, quando nos pintamos para dançar com eles. Os espíritos também não estão vindo para dar banho nas crianças como antigamente; o macaco-espírito não está banhando com as mulheres como fazia, as mulheres-espíritos não têm onde pescar e o yãmĩy não vem mais com o seu elefante-espírito. Os meninos também não têm onde banhar quando os espíritos-lagarta levam eles para ficar um mês no kuxex sem poderem ver suas mães e irmãs. No final do resguardo, o casal não tem um rio onde soprar e encerrar o período como antigamente. Atualmente, temos que consumir água dos poços artesianos que chega até algumas poucas torneiras no pátio de alguns grupos da aldeia, mas a bomba sempre queima e ficamos sem água durante dias seguidos. Além disso, a água muitas vezes sai vermelha e a qualidade não é garantida. Também não é da nossa cultura tomar banho de torneira ou chuveiro apenas duas vezes ao dia, como os brancos. As represas que existem na aldeia são impróprias para banho e consumo, e, apesar disso, nossas crianças, sem outra alternativa, acabam pescando e banhando nessas lagoas, o que provoca doenças e ferimentos constantes, já que arames e outros objetos cortantes se acumulam nessas águas, carregados pelas chuvas. Nós não podemos continuar vivendo dessa maneira! Não podemos dizer às nossas crianças que não se banhem ou que não pesquem! O que o governo espera que a gente faça? Que a gente diga pra elas ficarem em casa assistindo televisão e jogando videogame?” (Carta da comunidade de Aldeia Verde ao MPF, 09 de junho de 2018)
Em 2005, um grave conflito culminou na saída de dois grupos da TI Maxakali, entre eles as famílias aliadas à Noêmia Maxakali. Inicialmente, essas famílias tentaram a retomada de um território ancestral vizinho à Água Boa conhecido como Tehakohit, local onde surgiram cantos e onde viveram os pais de Izabel Maxakali, mãe de Noêmia. Porém, uma reintegração de posse obrigou a intervenção da Polícia Federal e a retirada das famílias do local. Durante dois anos, as famílias foram deslocadas quatro vezes: à princípio para um campo de futebol no município de Santa Helena, em seguida para uma chácara em Governador Valadares, na sequência foram para uma terra da União em Campanário e, por fim, se mudaram para uma fazenda adquirida pela FUNAI onde criaram a Aldeia Verde em 2007. A aquisição do terreno aconteceu após muitas buscas mal-sucedidas e quando o recurso ameaçava retornar para os cofres públicos. Para agravar a situação, um surto de hepatite atingiu a aldeia em Campanário, matando duas crianças e levando os indígenas ao desespero. Foi neste contexto de urgência e tensão, portanto, que os Tikmũ’ũn decidiram pela aquisição da fazenda em Ladainha. Desde o início, porém, a escolha foi controversa e precipitada pelas urgências burocráticas. Nenhum rio corta os 522ha da reserva e o seu relevo montanhoso dificulta a dispersão dos Tikmũ’ũn no seu interior.
TI CACHOEIRINHA
TI ALDEIA-ESCOLA-FLORESTA
Vou falar do nosso sonho.
O sonho da minha comunidade da Aldeia-Escola-Floresta.
O nosso sonho não saiu agora.
Desde 2005 que estamos sonhando com a terra
Porque fui professor e dava aula para crianças.
Eu falava sobre todas as caças que não existem mais. Só têm o nome.
O nosso desenho representa todos os bichos que não existem mais, porque acabaram todos: as caças maiores, as onças, as antas, os jacarés, as capivaras. E representa outros bichos que perdemos em Água Boa, porque acabou a mata de lá.
Nós saímos de Água Boa, fizemos retomada, pegamos nossa terra de volta. O nosso território. Foi em 2005, no município de Santa Helena de Minas. Mas deu muito problema com os políticos e fazendeiros.
E viemos para Ladainha. Fui eu que escolhi o nome de Aldeia Verde, porque, quando chegamos, vimos a Mata Verde, fizemos reunião e escolhemos o nome.
E nós ficamos. E nossa família cresceu bastante. Mas a terra não cresceu. Aí não tinha espaço para fazer casas, não tinha terra plana para arar e plantar comida.
Aí pensamos em lutar para não desmatar a mata de Aldeia Verde.
Temos que preservar.
Lutar para conseguir uma terra com rio e terras baixas, com espaço para as famílias construírem suas moradias.
Nós sofremos bastante no ano passado com essa doença que não tem cura. Pensei que ia matar nossos idosos, nossos pajés. Fizemos o Encontro de Pajés para treinar os jovens dentro da aldeia. Essa doença não é daquelas que nós conseguimos curar. Pensei que ia matar pajés e pessoas importantes.
Visitamos várias terras. Contei e perdi a conta. Não achava terra. Os fazendeiros não queriam vender, não queriam ajudar os povos indígenas. Vimos que tinha muito preconceito. Não querem vender terra para indígenas.
Depois fizemos a visita em Itamunheque. Fomos em 4 pessoas e depois 8 pessoas para visitar. Temos 8 lideranças. Toda a comunidade tem o seu grupo. Fizemos reunião grande com as lideranças que são responsáveis por suas famílias. Aí gostaram dessa terra, fizemos reunião e decidimos.
Porque esta terra, o Vale do Mucuri, era nosso território maior, não tinha limite. Mas hoje a nossa terra é muito pequena. Temos 95 famílias numa terra pequena e uma só pessoa ocupa terra de mais de 100 alqueires. Um fazendeiro tem terra grande e nós, povos indígenas, estamos sem terra.
Nosso sonho é pegar a terra e recuperar. Porque ela precisa ser curada, precisa de tratamento. Porque a terra é viva. Terra fala, terra olha a gente e terra grita.
Mas o fazendeiro não escuta que a terra está gritando e precisa de socorro.
Por isso que nós queremos reflorestar, e fazer a Aldeia-Escola-Floresta.
O nosso sonho tem que se realizar.
O nosso sonho é pegar terra, reflorestar.
Essa terra é nossa.
Nũhũ yãgmũ yõg hãm.
Porque essa terra é nossa?
Sem a terra não tem escola diferenciada.
Sem a terra não tem saúde diferenciada.
Porque nós lutamos para conquistar a terra.
Nós realizamos nosso sonho e hoje vamos criar muitos projetos em cima da terra. Da nossa terra.
Porque nós chamamos Aldeia-Escola-Floresta?
Porque onde tem aldeia tudo é “sala de aula”.
Onde tem árvore e sombra é “sala de aula”. As crianças vão cantando o nosso ritual. Imitam.
Na beira do rio elas vão brincar, cantar e escrever na areia.
Tudo é “sala de aula” dentro da aldeia.
Todos os homens vão dentro do mato e vão cantando dentro do mato. Vão tirando madeira e vão cantando.
Por isso colocamos o nome Aldeia-Escola-Floresta porque toda a aldeia é escola.
Onde tem sombra as mulheres vão se juntar e fazer os artesanatos.
As crianças vão chegando, escutando do lado e aprendendo também. A aldeia inteira é escola.
Onde tem barraca de ritual é uma escola verdadeira, muito importante. Vai ter canto, história, cultura, comida tradicional.
Nós, comunidade da Aldeia-Escola-Floresta, queremos terra para Yãmĩyxop, para crianças, para o futuro.
Porque nós nascemos todos junto com a floresta, nascemos todos junto com a caça.
Essa terra é nossa mãe porque ela alimenta todos nós.
Todas as caças os nossos cantos registram.
Alguns bichos que perdemos, o canto registra.
E os desenhos também representam os animais.
Tem bichos grandes que perdemos, mas registramos o nome. Nosso canto fala seus nomes.
Nós Maxakali somos sofredores, mas nosso Yãmĩy nos acompanha.
Todos os dias os Yãmĩy saem comigo, com todos os Maxakali.
Porque eu falo Aldeia-Escola-Floresta?
Se eu sair daqui, se eu for para o mato, o meu Yãmĩy está me acompanhando, eu vou cantando dentro do mato.
Se eu brincar no rio, outro Yãmĩy vai me acompanhar. Eu vou imitar qualquer bicho: peixe, jacaré, andorinha, vou fazer seus cantos.
Por isso é que chamamos Aldeia-Escola-Floresta.
Aqui, a minha casa é escola, porque estamos passando o nosso conhecimento para os jovens que estão aprendendo agora.
Nós somos professores. Nós estamos falando. Eles estão escutando as falas.
Pegamos a palavra boa para esperar a nossa memória, para não cair.
Tem que crescer. Ter o conhecimento diferente, pegar o outro conhecimento para crescer a Aldeia-Escola-Floresta.
Isael Maxakali
Janeiro 2022